Uma história que surge do preconceito

O Grammy Award foi concebido em 1957, quando sete empresários musicais foram chamados para indicar nomes para a Calçada da Fama em Hollywood. Decidiram, então, criar uma premiação para reconhecer talentos musicais sem considerar apenas vendas ou posição nas paradas, ao contrário das premiações cinematográficas. A Academia de Artes de Gravação introduziu o evento como uma resposta à ascensão do Rock & Roll, visando preservar o padrão de qualidade musical. Priorizavam a "boa música" em detrimento do som rebelde, moderno e urbano, como o Rhythm and Blues e o Rap. Ou seja, desde sua origem, o Grammy já demonstrava preconceitos e refletia os interesses da elite branca da sociedade.


O hip-hop, por exemplo, que nasceu nos guetos dos EUA e ganhou força nos anos 70, representa uma cultura de expressão e resistência em meio a ambientes marcados pela violência e marginalização. No entanto, sua ascensão foi prontamente desencorajada pelas elites sociais e musicais - como no caso da criação da premiação.


Contudo, foi somente em 4 de maio de 1959, que os Gramophone Awards foram inaugurados em cerimônias simultâneas no Beverly Hilton Hotel em Los Angeles e em Nova York, celebrando os lançamentos musicais do ano anterior e dando início a mais importante premiação da indústria musical.

Racismo e exclusão

As controvérsias em torno do Grammy existem há décadas e o problema da premiação com a comunidade negra não é novo: em 1995 a Academia anunciou a criação de uma categoria exclusivamente para rap, que foi seguida por diversas outras categorias para black music. O artista mais premiado na categoria de rap, no entanto, é branco — Eminem.


JAY Z, considerado por muitos o atual "farol" do gênero e com muitas músicas de cunho político e social, raramente vence a premiação — considerando que a maioria esmagadora de suas vitórias são colaborações com outros artistas. O rapper Tupac Shakur, considerado por muitos o maior rapper e um dos maiores artistas de todos os tempos, nunca foi premiado com o gramofone.


O fato da premiação ser alvo de críticas por sua falta de reconhecimento aos ícones do hip-hop, embora artistas negros dominem categorias específicas como Melhor Música e Melhor Álbum de Rap, sua representação nas categorias principais é significativamente menor, levantando questionamentos sobre o reconhecimento dado a gêneros musicais predominantemente associados à comunidade negra.

Eminem grammy
Eminem acumula seis gramofones na categoria "Melhor Álbum de Rap"
Jay-Z Grammy
Jay-Z possui apenas uma vitória na categoria "Melhor Álbum de Rap"

Melhor Álbum de Rap

Segundo levantamento feito, foram 28 edições da categoria Melhor Álbum de Rap e 21 vitórias de artistas negros, consolidando 75% dos álbum premiados.


Excluindo os prêmios ganhos em colaborações e duplas/trios, são 22 edições válidas para 16 artistas negros vencedores.


Depois de Eminem, Kanye West foi quem mais recebeu 0 prêmio - quatro vezes - seguido pela dupla OutKast, que venceu três vezes.


Jay-Z é o artista com mais indicações, tendo sido indicado nove vezcs. O rapper canadense Drake foi o primeiro e único artista não americano a vencer.

Percentual de vencedores na categoria

Melhor Álbum de Rap

Em todas as edições, somente duas artistas femininas levaram o prêmio para casa, sendo Lauryn Hill a primeira artista feminina a vencer a categoria, quando venceu em 1997 como membro do Fugees, e Cardi B, em 2019, fazendo história sendo a primeira artista solo feminina a receber o prêmio.

Percentual de mulheres vencedoras solo
Somente uma mulher está estre os vencedores

Melhor Música de Rap

Agora, quando analisado a categoria de Melhor Música de Rap, são 20 edições e 18 vitórias de artistas negros, resultando em 90% dos ganhadores. Contudo, somente 8 desses artistas ganharam a categoria com música solo - a grande marioria são colaborações.

Dito isso, entroduzimos o que a análise estatística revela como um padrão alarmante. Em categorias como Artista Revelação, Gravação do Ano, Música do Ano e Álbum do Ano - as quatro principais categorias da noite - a participação e a vitória de artistas negros são notavelmente baixas, refletindo um viés evidente na premiação.

Percentual vencedores melhor música de Rap

Artista Revelação

Entre todos os concorrentes ao prêmio de Artista Revelação, somente 24,25% são negros. Se deixarmos somente artistas solos, excluindo bandas, trios ou duplas, o número chega a 33,18%. O número de negros vencedores pelo número de edições existentes mostra que apenas 17,46% dos premiados artistas revelações são pretos.

Artista Revelação

Em todas as suas edições, somente quatro gramofones foram distribuídos entre artistas de Rap, sendo três artistas negros. A primeira vez que um artista negro de hip hop venceu a catorgia foi em 1999, com Lauryn Hill. Em 2014, a dupla Macklemore & Ryan Lewis também levou o prêmio para casa e, somente em 2017, o cantor Chance the Rapper conseguiu um feito histórico na cerimônia do Grammy ao levar o prêmio de revelação do ano, tornando-se o segundo artista negro a vencer a categoria. Em suas edições mais recentes, a cantora Megan Thee Stallion também consagrou-se a artista revelação do ano de 2021.

Lauryn Hill em 1999.
Chance, the Rapper em 2017.
Megan Thee em 2021.

Gravação do Ano

Os prêmios de Gravação do Ano são concedidos desde 1959. Sendo um dos quatro prêmios Grammy de maior prestígio, este prêmio vai para o intérprete e a equipe de produção da canção.

Posto isto, 27% dos interpretes vencedores são negros. Contando apenas os artistas solo, 29,79%.

Percentual de vencedores da gravação do ano

Música do Ano

Nesta categoria, 26% de todos os concorrentes são negros e, se for considerado apenas os artistas solo, o número passa para 28%. Em 65 edições, somente em 14 delas teve-se negros premiados, lembrando que o cantor Stevie Wonder é responsável por três destes prêmios. E, se contarmos somente artistas solo, foram 47 edições para 10 vitórias de artistas negros, resultando em 23% das disputas.

Gráfico música do ano

Álbum do Ano

E o prêmio mais aguardado da noite, em todas as suas edições, possui apenas 24,21% de concorrentes negros. Considerando apenas artistas solo, o número aumenta para 30,28%.

Ao longo dos anos, as regras sobre quem recebeu um prêmio mudaram. Até 1965, apenas o artista recebia o prêmio. Depois, foi acrescentado, pouco a pouco, o concedimento que tem-se hoje, premiando o artista, artista participante, compositor, produtor, engenheiro de gravação e engenheiro de masterização com contribuições significativas para esse álbum.

Gráfico álbum do ano

Álbum do Ano

E os vencedores? Foram 65 edições com 14 vitórias de pessoas negras. Stevie Wonder, por exemplo, é responsável por três dessas vitórias na década de 70. Com isso, temos que somente 21,54% dos premiados na categoria principal são negros.

Gráfico álbum do ano

A situação do Grammy chegou a um ponto crítico em 2017, quando grandes nomes como Kanye West (juntamente com artistas de seu selo GOOD MUSIC), Drake e Frank Ocean decidiram boicotar a premiação. Como resposta, Kanye West perdeu todas as 7 categorias que foi indicado na premiação — seu álbum The Life of Pablo foi considerado um dos melhores trabalhos de sua carreira e de todo o ano. Frank Ocean recebeu uma alfinetada de dois produtores do Grammy a respeito de sua performance de 2013 com a música Forrest Gump na cerimônia. "Não é um grande momento da T V", disseram os organizadores. Em resposta, Ocean disse: "Vocês sabem o que realmente não é um 'grande momento de T V'? '1989' (álbum de Taylor Swift) pegando o Grammy de álbum do ano em vez de 'Pimp a butterfly' (álbum de Kendrick Lamar). Essa foi uma das maiores 'falhas' de TV que eujá vi".

"Essa instituição certamente tem uma importância nostálgica, mas ela não representa as pessoas que vem de onde eu vim, e que acreditam no que eu acredito. Ganhar um prêmio de TV não me sacramenta com sucesso. Levei algum tempo para aprender isso . " — Frank Ocean

É irônico que, em um ano onde o Grammy era prometido de consagrar um gênero há muito marginalizado por ele (um gênero, vale notar, que surgiu como forma de expressar as dificuldades da comunidade negra), o grande vencedor da noite é um homem que o utiliza com o propósito de lucrar com músicas consideradas por muitos como "fúteis". Simplificando: é triste que o vencedor de uma premiação prometida para um gênero político tenha sido totalmente apolítico.

Outro caso foi em 2016 quando, no auge do movimento Black Lives Matter, a música "Alright", por Kendrick Lamar, foi escolhida por muitos como o hino do movimento. Na música, o rapper falava sobre como tudo iria ficar bem — apesar dos pesares, era expressado também o desafeto da comunidade negra com a polícia americana e vários outros aspectos da problemática. Lamar foi indicado a Música do Ano com a faixa na premiação em 2016, sendo derrotado por "Thinking Out Loud", do cantor Ed Sheeran.

Assista ao clipe: Thumbnail Kendrick Lamar

Recentemente, Beyoncé se tornou a artista mais premiada na história do Grammy, com um total de 32 prêmios em 88 nomeações. Isso levanta uma questão interessante: ela é a mais premiada ou a mais negligenciada? Afinal, seus 32 prêmios representam apenas 36,36% de suas indicações. É importante notar que, dentre esses prêmios, apenas um foi conquistado na categoria principal, quando "Single Ladies" ganhou o prêmio de Música do Ano em 2010. Os demais prêmios foram distribuídos em categorias de R&B, Rap ou Duo - gêneros que, curiosamente, historicamente foram subestimados pela sociedade.

Gráfico Beyoncé

A artista Nicki Minaj é outro exemplo. No ano de 2012, ela foi indicada em 4 categorias, incluindo a de Artista Revelação. Resultado: nenhum prêmio ganho. Anos depois, no Twitter, a rapper comentou: "Nunca se esqueça que o Grammy não me deu o troféu de Artista Revelação quando eu tinha sete músicas simultaneamente nas paradas da Billboard e a maior semana de lançamento que qualquer outra mulher rapper na última década — o que inspirou uma geração. Eles deram o prêmio para o homem branco, Bon Iver." Desde então, a rapper acumulou 12 indicações e não recebeu nenhum prêmio. As categorias incluíam Performance de Rap, Álbum de Rap, Colaboração de Rap... mais uma vez, o artista negro sendo sempre categorizado de forma segmentada.

Acusações da ex-presidente

Deborah Dugan é uma executiva norte-americana que foi a primeira mulher presidente e CEO da Recording Academy, que apresenta os Grammy Awards, em 2019 e 2020. Ela deixou o cargo após acusações de má conduta.

Uma semana depois de ser demitida, Dugan fez uma série de alegações explosivas que apontam para uma cultura de discriminação racial e de gênero enraizada na premiação. Ela destaca corrupção nos eleitores, super-representação de vencedores brancos e homens, além de acusações de encobrimento de casos de estupro e má conduta sexual.

A ex-presidente também aponta para a influência do conselho do Grammy na nomeação de artistas, levantando preocupações sobre a justiça do processo de seleção. As denúncias de discriminação racial e de gênero entre os funcionários do Grammy também revelam um ambiente tóxico e excludente.

A lista de denúncias por parte de Deborah Dugan inclui uma seção sobre o processo de indicações para o Grammy. Segundo ela:

  • Alguns membros do conselho nos "comitês secretos" que escolhem os indicados ao Grammy representam ou têm relacionamento com artistas indicados;
  • Os membros de conselhos usavam esses comitês como uma oportunidade para promover artistas com quem eles têm relacionamentos;
  • Os membros desse comitê também manipulam o processo de indicação para garantir que determinadas músicas ou álbuns sejam indicadas quando 0 produtor do Grammy (Ken Ehrlich) quiser que uma música em particular seja executada durante o show;
  • Era permitido ao comitê indicar artistas que não estavam na lista inicial de 20 nomes possíveis para uma categoria;
  • O comitê chegou a selecionar artistas que estavam nesta lista inicial para participar do comitê de votação da categoria para a qual foram indicados. Como resultado, um artista que inicialmente estava classificado na posição de número 18 entre os 20 iniciais da categoria "Canção do ano" de 2019 acabou indicado. Assim, Ed Sheeran e Ariana Grande, que haviam recebido votos dos membros da Academia, acabaram ficando de fora da lista.

Declarações sobre racismo implícito

Tyler, the Creator foi premiado com um Grammy na categoria Melhor Álbum de Rap por IGOR durante a semana turbulenta envolvendo a situação de transparência na premiação e as declarações polêmicas de Dugan. Apesar de feliz pelo reconhecimento, ele aproveitou para falar sobre os casos de racismo implícito na premiação:

"Por um lado eu estou muito grato que 0 que eu fiz pode ser reconhecido em um mundo como esse... mas é péssimo que sempre que nós, e eu quero dizer caras que se parecem comigo, fazemos alguma coisa que transcende gêneros ou coisa assim, eles sempre colocam em alguma categoria urbana ou de rap.

Confira a declaração completa: